Caros irmãos e irmãs em Cristo
Estamos a iniciar, novamente, o Tempo da Quaresma que não deverá ser apenas uma repetição, mas um tempo de graça espiritual no ritmo litúrgico marcado pela revelação de Deus no tempo cronológico. A nossa espiritualidade é histórica e tem etapas ao longo do tempo para nos ajudar a um maior aperfeiçoamento.
O tempo da Quaresma começa com a Quarta-feira de Cinzas e termina na Quinta-feira Santa, antes da Missa da Ceia do Senhor, dando-se início ao Tríduo Pascal. A Quaresma justifica-se, assim, como caminhada de preparação para celebramos solenemente a Páscoa do Senhor. Para os catecúmenos que se preparam para receber os Sacramentos da Iniciação cristã (Batismo, Crisma e Eucaristia) na Noite Pascal, a Quaresma é o tempo de preparação próxima. Para os cristãos já batizados, a Quaresma é tempo de reconciliação e caminho de preparação para a renovação das promessas do Batismo. Portanto, para todos, está em causa a vida cristã a aprofundar e a renovar pela celebração da Páscoa do Senhor.
Para sublinhar o apelo ao essencial, na Quaresma a liturgia da celebração da Missa é menos festiva: não se reza o hino do Glória, não se canta o Aleluia, a cor dos paramentos é roxa e não haverá decoração com flores.
Proximidade com Cristo
Depois do Batismo no Jordão e antes de escolher os seus doze discípulos, Jesus foi para o deserto da Judeia fazer um retiro de quarenta dias, tempo que alude aos quarenta anos que o povo hebreu viveu no deserto comandado por Moisés. O deserto é o espaço privilegiado do encontro íntimo com Deus, espaço e tempo onde se faz caminho com desejo de chegar à terra prometida. É este o contexto da mensagem do Papa Francisco para a Quaresma deste ano: “Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade”.
A sugestão do deserto, como lugar do encontro com Deus, supõe o silêncio sem barulho nem superficialidade. Muitos milhares de pessoas no mundo caminham para os santuários. Pela proximidade geográfica, muitas pessoas gostam de dirigir-se ao Santuário de Fátima em horas de recolhimento e maior silêncio. Nas estradas da nossa região, muitos peregrinos de Santiago caminham fazendo uma experiência de solidão, de reencontro com o sentido da vida e de procura daquilo que a sociedade de consumo não lhes dá.
Estamos todos convidados a fazer da Quaresma um tempo especial de vida, marcado com boas opções e bom discernimento como Jesus fez no deserto da Judeia. Todos estamos sujeitos a muitas propostas e algumas interessantes (por isso mesmo são tentações) de ocupação do tempo e da mente. Assim, é necessário vigilância para que os propósitos que têm a ver com a nossa identidade e esforço de fidelidade, não sejam esquecidos e abandonados.
Caminho para a Liberdade
Para o povo hebreu comandado por Moisés, o tempo de deserto a caminho da terra prometida foi marcado pelo encontro com Deus. Moisés encontrou na oração a força para discernir e conseguir com êxito a sua missão. A Quaresma é caminho e preparação para a Páscoa e é também o retomar do sentido da caminhada da vida humana. Qual é o sentido das nossas vidas? Onde queremos chegar com a vida? O ódio, as guerras e a corrupção revelam o medo e a ansiedade de alguém que não descobriu o sentido universal da vida humana. E sem esse sentido o ser humano torna-se fechado e perigoso. O sentido da vida não somos nós que o inventamos, já existe antes de nós. O que necessitamos é de descobri-lo, aceitá-lo e nele caminhar assumindo a fragilidade humana. A Quaresma é, por isso, também tempo de revisão de vida.
Milhões de pessoas no mundo buscam e procuram, por caminhos diversos, a espiritualidade, porque a vida aponta para mais além. O ser humano é permanentemente um insatisfeito. Há sempre algo que falta por mais coisas ou bens que se tenha. Assim, negar ou proibir a espiritualidade na sociedade é abafar uma dimensão impossível de ser abafada na natureza humana. Por isso mesmo a liberdade religiosa deve ser salvaguardada em todos os países.
A liberdade era uma constante na pessoa de Jesus e o segredo residia na sua oração ao Pai que fazia parte da sua jornada (cf. Mc 1,35). Jesus revela a sua unidade e centralidade na vontade do Pai, ensinou os seus discípulos a rezarem a oração do ‘Pai Nosso’ (cf. Mt 6,9-14), rezou ao Pai pela unidade dos seus discípulos do presente e do futuro(Jo 17) e morreu na cruz a rezar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
Em tempo de Quaresma tenhamos presente as duas dimensões da oração: a oração comunitária quando rezamos com outros irmãos, especialmente a Eucaristia, e a oração individual e discreta recomendada por Jesus: “Quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te” (Mt 6,6).
A verdade: valor e caminho do amor
A Verdade como valor humano é fundamental na pessoa para viver em família e em comunidade e para edificar uma sociedade sempre a melhorar. Sem verdade, o amor fragiliza e pode desaparecer, não há liberdade que perdure. Sem verdade, uma Família ou uma comunidade fica prejudicada na sua dimensão de vida e de amor. Sem verdade, uma sociedade tende para a injustiça e corrupção e a vida torna-se infernal.
Será uma ousadia tentar definir a verdade. Para os cristãos a verdade é Jesus Cristo, pois n’Ele encontramos a verdade acerca de Deus, do amor e da pessoa humana e oseu destino. Todavia, esta afirmação não é arrogante nem nos retira a capacidade de respeitar e dialogar com aqueles que buscam a verdade por caminhos diferentes.
O jejum recomendado para o tempo da Quaresma, com indicação especial na Quarta-feira de cinzas, deve acontecer nesta busca de verdade da nossa identidade cristã. A nossa referência é Cristo, Homem novo, que sendo-nos apresentado como o Filho bem amado do Pai, jejuou no seu retiro no deserto da Judeia para se concentrar ainda mais na intimidade divina e na missão que havia de assumir.
A verdade na conversão e no Perdão
Como escreveu o Papa Francisco na sua mensagem: “Na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um estremeção de criatividade: o lampejar duma nova esperança. Quero dizer-vos, como aos jovens que encontrei em Lisboa no verão passado: «Procurai e arriscai; sim, procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem para pensar assim»”.
A conversão supõe que a pessoa humana deixa de ser o criador de si mesmo para admitir que Deus é o seu Criador e Cristo o seu Salvador. Conversão conduz assim a uma nova capacidade de ver e interpretar tudo a partir de Deus. Deus que é o Pai todo poderoso no amor de compaixão pelos seus filhos, sempre à nossa espera para nos acolher, perdoar e convidar para a Festa do Cordeiro. Foi este Pai que Jesus nos revelou e nos enche de esperança. Este ano pastoral é para nós o ano do perdão. Que a Quaresma seja um tempo privilegiado para promovermos o Perdão que nos transforma.
A verdade na partilha
A Quaresma é também um tempo de partilha material com a promoção de renúncias individuais, orientadas comunitariamente para situações de declarada necessidade de apoio. No ano passado, a Renúncia quaresmal, com um leve acrescento para arredondamento, foi enviada para onde estava destinada: 10.000,00€ para a Dioceses de Gurúè (Moçambique) e 10.000,00€ para à Diocese de Petrolina (Pernambuco – Brasil).
Este ano, ouvido o parecer do Conselho Presbiteral, a Renúncia quaresmal destinar-se-á ao Patriarcado de Jerusalém e Belém. É a mesma Diocese que integra as comunidades cristãs de Jerusalém (Israel) e de Belém (Cisjordânia-Palestina). A guerra atingiu a todos, não há turismo, as comunidades cristãs são minoria e o pastor católico, Patriarca, é o mesmo para os cristãos dos dois povos. A nossa renúncia deste ano expressa também a nossa solidariedade para com comunidades cristãs em situação difícil e na terra onde Jesus viveu.
Que a Virgem Maria, Mãe da Reconciliação, nos acompanhe neste tempo favorável da Quaresma, unidos a Cristo na sua Paixão pela humanidade.
+ José Traquina
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